Um bom cristão deveria fazer valer a verdade. Nem sempre é bem assim. Leia a matéria da Agência Pública com o Mr. Dops e saiba o porquê.
Por Marina Amaral
Nossa repórter passou mais de 15 horas entrevistando um dos poucos
delegados do DOPS ainda vivos, entre os que atuaram nos anos mais duros
da ditadura. Enfrentou resistência, informações desencontradas e até um
suposto pacto de silêncio – um embate que antecipa os desafios da
Comissão da Verdade
Aos 80 anos, José Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos
tempos em que era o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem
Política e Social de São Paulo, “o melhor departamento de polícia da
América Latina”, não se cansa de repetir.“O DOPS era um órgão de
inteligência policial, fazíamos o levantamento de todo e qualquer
cidadão que tivesse alguma coisa contra o governo, chegamos a ter fichas
de 200 mil pessoas durante a revolução”, diz, referindo-se ao golpe
militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura no Brasil.
Embora esteja aposentado há 27 anos, não há nada de senil em sua atitude
ou aparência. Os olhos astutos de policial ainda dispensam os óculos
para perscrutar o rosto do interlocutor, endurecendo quando o delegado
acha que é hora de encerrar o assunto.
Bonchristiano gosta de dar entrevistas, mas não de responder a perguntas
que lancem luz sobre os crimes cometidos pelo aparelho policial-militar
da ditadura do qual participou entre 1964 e 1983: prisões ilegais,
sequestros, torturas, lesões corporais, estupros e homicídios que,
segundo estimativas da Procuradoria da República, vitimaram cerca de 30
mil cidadãos. Destes, 376 foram mortos, incluindo mais de 200 que
continuam até hoje desaparecidos.
Os arquivos do DOPS se tornaram públicos em 1992, mas muitos documentos
foram retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do então
diretor da Polícia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma. Entre
os remanescentes estão os laudos periciais falsos, produzidos no
próprio DOPS, que transformavam homicídios cometidos pelos agentes do
Estado em suicídios, atropelamentos, fugas. No caso dos desaparecidos,
os corpos eram enterrados sob nomes falsos em valas de indigentes em
cemitérios de periferia.
Globo, Folha, Bradesco – e Niles Bond
Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que participaram
desse período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o
vozeirão para contar casos do tempo em que os generais e empresários o
tratavam pelo nome. Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS
para conversar com a gente quando estava em São Paulo”, e ele podia
telefonar a Otávio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS
precisasse”. Quando participou da montagem da Polícia Federal em São
Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em Higienópolis:
“Nós do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo dentro da
rua Piauí, até máquina de escrever”.
O “doutor Paulo” sorri enlevado ao lembrar dos momentos passados com o
marechal Costa e Silva (o presidente que assinou o AI-5 em dezembro de
1968, suspendendo as garantias constitucionais da população). “O Costa e
Silva, quando vinha a São Paulo, dizia: ‘Eu quero o doutor Paulo
Bonchristiano’”, e imita a voz do marechal – ele adora representar os
casos que conta.
“Eu fazia a escolta dele e ele me chamava para tomar um suco de laranja
ou comer um sanduíche misto na padaria Miami, na rua Tutóia, vizinha ao
quartel do II Exército. Todo mundo querendo saber onde estava o
presidente da República, e eu ali”, delicia-se.
Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos
Estados Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava
a “eficiência” da polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops”.
Orgulha-se também de outro apelido – “Paulão, Cacete e Bala” – que diz
ter saído da boca dos “tiras” quando “caçava bandidos” na RUDI (Rotas
Unificadas da Delegacia de Investigação), no início da carreira, com um
“tira valente” chamado Sérgio Fleury. Anos depois, os dois se
reencontrariam na Rádio Patrulha, de onde saiu a turma do Esquadrão da
Morte, levada para o DOPS em 1969, quando Fleury entrou no órgão.
“Polícia é polícia, bandido é bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocês
de fora é diferente, mas para nós, acabar com marginal é uma coisa
positiva. O meu colega Fleury merecia um busto em praça pública”,
afirma, sem corar.
O delegado Sérgio Fleury e sua turma de investigadores se celebrizaram
por caçar, torturar e matar presos políticos no DOPS, enquanto
continuavam a exterminar suspeitos de crimes comuns no Esquadrão da
Morte.
Conversas gravadas
No decorrer de nove tardes passadas, entre junho de 2010 e janeiro deste
ano, em seu apartamento no Brooklin, no 13º andar de um prédio de
classe média alta, aprendi a escutar com paciência os “causos” que
“doutor Paulo” narra com humor feroz, até extrair informações
relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava com livros e documentos e
voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se responsabilizasse pelo
que dizia.
De certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as dificuldades que serão enfrentadas pela Comissão da Verdade, a ser instalada em abril para
apurar fatos e responsáveis – sem punição penal prevista – pelas
violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988,
abrangendo o período da ditadura militar. O objetivo da comissão é
devolver aos cidadãos brasileiros um passado que ainda não se encerrou,
como provam os desaparecidos, e impedir que funcionários públicos sigam
mantendo segredo sobre atos praticados a mando do Estado.
A fragilidade da lei em pontos cruciais, porém, provoca ceticismo nas
organizações de direitos humanos, em especial ao permitir o sigilo de
depoimentos – ferindo o direito à transparência pública –, e ao não
prever punições aos responsáveis pelos crimes, nem mesmo medidas
coercitivas para os que se recusarem a depor.
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Charge do Angeli